Porque a humanidade pré-histórica, em meio a ambientes naturais
intocados, se esforçou para representar na escuridão das grandes
cavernas, eventos de seu cotidiano social e religioso (ex: O complexo
cavernoso de Lascaux, França) ou gravar imagens geometrizadas e simbólicas de seus ritos iniciáticos em rochas remotas (ex: Gilf Kebir, oeste do vale do Nilo, Egito)?
Suas simbolizações, embora míticas e pitorescas, tendiam a atestar a
crença em poderes além do habitual, na possibilidade do deslocamento
perceptivo através dos mundos, da comunicação com os ancestrais e na
continuidade da vida após a morte. Esta é a era dos mistérios das
cavernas: o segredo da vida e da morte simbolizada como o padrão mítico
que inicia no desaparecimento da luz, passa por um processo de
interiorização mística e termina, no reaparecimento da luz
(renascido). Tais iniciações em cavernas eram a forma com que nossos
ancestrais buscavam acessar os planos superiores, seja para colher
sabedoria, apaziguar os espíritos da natureza ou ampliar o seu poder
para a realização de curas, ou outras atividades (ex: caça, etc).
O xamã dançarino. Caverna de Trois Frères, França |
E é nessas antigas catedrais de pedra[2], dentro de alguma Montanha, você passaria a caminhar por uma distância considerável, através de um túnel sinuoso e estreito. E nesse percurso você poderia observar diversos caminhos, algumas iluminadas por fogueiras, com pessoas conhecidas ou não, envolvidas nos mais diversos interesses social e seus ritos de iniciação (como ritos de passagem à vida adulta), poderia observar uma variedade de animais conhecidos, desconhecidos e fantásticos pintados nas paredes, você ouviria o som das estalactites batendo… verias os morcegos que estão lá se abrigando… É provavelmente seria possível também observar imagens de humanoides se divertindo, dançando ou o convidando para algo totalmente diferente dos eventos do cotidiano… Nisso, você poderia se perguntar: “Quem seria esses estranhos homens correndo por aí em roupas invisíveis, gritando, dançando, em êxtase assim como esse xamã dançarino acima encontrado na Caverna de Trois Frères da França... Que dança secreta é essa? Porque ela me convida para ir em direção a parte mais escura dessa caverna, e por que quanto mais dentro vou, fica cada vez mais claro que a morte passa a ser o palco central dessas imagens?
"O Poço do Homem Morto", Caverna de Lascaux, França. |
O propósito subjacente deste drama das trevas é iniciático-religioso e mágico. A primeira introduz uma reconexão do ser com o Ser por meio da sua camada arquetípica, mítica e a segunda encena a manipulação bem sucedida da natureza evidenciando assim aquele aumento de poder pessoal advindo dessa reconexão.
Em resumo, podemos dizer que os três estágios básicos que caracterizavam os mistérios das cavernas do Paleolítico Superior são:
1. A entrada: o túnel: o processo de diferenciação da luz à escuridão;
2. O santuário: a catedral: o lugar isolado do mistério da luz oculta;
3. A saída: o retorno: o processo de integração das trevas à luz.
Luz e escuridão são as bases psicofísicas dos mistérios da caverna. A caverna é uma área de mediação protegida onde o ser humano e os arquétipos da natureza se encontram. Trata-se do lugar que marcará o seu novo nascimento. O túnel que dá acesso ao santuário seria os estágios e estações da vida e o outro mundo (antes e depois da vida). E é na escuridão natural do santuário, que eventos como a morte de um caçador ou as guerras entre aldeias podiam ser revividos e as causas combatidas de forma simbólica e alegórica. Trata-se aqui de umas das formas mais primitivas de psicoterapia (de mergulho em si mesmo) que há. Já a saída, marca o reencontro do indivíduo, já renascido, com o Mundo. Esse indivíduo agora tomado por um maior saber, observa também que as possibilidades no existir ampliaram-se em concomitância com o poder pessoal de realizar (e realizar-se) de acordo com o seu querer.
Os Cro-Magnon foram os primeiros a usar o interior das grandes cavernas para invocar a experiência da morte simbólica e a subsequente iniciação em um novo estado de ser mais poderoso e rejuvenescido. Talvez ser um melhor caçador, um melhor curador, um líder espiritual. Esses hominídeos superiores foram capazes de simbolizar artisticamente suas experiências religiosas e mágicas e, assim, moldar as tradições espirituais que vieram posteriormente. Daqui surgiram noções como céu, inferno, deuses, a compreensão de como provocar os estados alterados de consciência e da necessidade de estabelecer o sacerdócio em meio as aldeias. Suas experiências comuns moldaram os primeiros mitos nas grandes civilizações subsequentes, inclusive, algumas iniciações secretas (ex. no Antigo Egito e na Grécia), no qual irei dar uma atenção especial nas próximas publicações desta série.
[1] como por exemplo acontecia com Sri Ramana Maharshi, mestre de Advaita Vedanta e considerado um santo no sul da Índia.
[2] que inspiraram a arquitetura de alguns centros de iniciação religiosas posteriores como as famosas pirâmides egípcias e as catedrais católicas clássicas, onde as últimas de frente tendem a se assemelhar a uma grávida deitada.
[3] na segunda parte dessa série iremos observar que existe uma recorrência deste padrão iniciático universal na própria religião egípcia, especialmente nas encenações que aconteciam no festival de Sed, abertos ao público, bem como nos eventos mais restritos, que acontecia nas partes mais internas das câmaras funerárias, distante dos olhares da sociedade egípcia. Tais iniciações irão repercutir nos ritos maçônicos, nos rosacruzes e nas práticas alquímicas posteriores. Vale notar que esse padrão é também recorrente no seio das iniciações orientais.